Nos últimos meses, a cobertura da imprensa italiana sobre a cidadania italiana por iure sanguinis tem seguido um padrão preocupante, especialmente quando se trata de descendentes de italianos na América do Sul.
A bola da vez é o presidente argentino, Javier Milei, cuja cidadania italiana, garantida por lei, é um direito de nascimento, mas é alvo de críticas.
Manchetes sensacionalistas alimentam a polêmica.
O Il Post (com média de 23 milhões de leitores/mês) publicou: “Meloni concede cidadania italiana a Javier Milei”; já o Open (26 milhões de leitores) afirmou: “Governo deu cidadania a Javier Milei”; e o Today (44 milhões) seguiu na mesma linha: “Governo Meloni dará cidadania italiana ao presidente argentino Milei”.
Essas narrativas distorcem os fatos, insinuando que a cidadania foi um “presente” político do governo italiano, ignorando completamente a legislação vigente.
A rede Sky TG24 publucou: “Javier Milei, que tem ótimas relações com Giorgia Meloni, deve receber do governo a cidadania italiana com base no princípio do ‘ius sanguinis’. A confirmação oficial pode ocorrer durante sua participação no evento político do Fratelli d’Italia”.
Outros veículos foram ainda mais longe. O Affaritaliani (com média de 12 milhões de leitores/mês) estampou:”Cidadania italiana para Milei. A história do avô calabrês que fugiu para a Argentina. Meloni entrega o ‘presente’ de Natal”.
Pior ainda, quando agências de notícias alimentam a narrativa. A Askanews publicou: “Cidadania, Bonelli: Tajani deve esclarecer se foi reconhecida a Bolsonaro além de Milei”.
E para reforçar, ouviram o polêmico deputado Angelo Bonelli, que declarou:
“O governo concedeu a cidadania italiana a Milei com uma rapidez que muitos descendentes de italianos no exterior, com pais ou avós italianos, não recebem. Por que essa prioridade a Milei, enquanto outros esperam anos?”.
O que realmente diz a lei?
A lei italiana é direta: quem descende de cidadãos italianos, sem interrupção no direito, nasce italiano. No caso de Javier Milei, sua cidadania deriva do avô Francesco “Ciccio” Milei, que partiu da Calábria para a Argentina em 1926.
Retratar o reconhecimento dessa cidadania como um favor político, um presente de Natal, não só desinforma o público, como também coloca em xeque o sistema jurídico italiano, sugerindo que os processos dependem de interesses governamentais.
Por que os sul-americanos são alvos frequentes?
Descendentes sul-americanos são constantemente retratados de forma pejorativa na mídia italiana, mesmo sendo uma das maiores comunidades de ítalo-descendentes do mundo.
Com milhões de pessoas com direito legítimo à cidadania italiana, essas famílias frequentemente enfrentam acusações de oportunismo ou de buscar vantagens na União Europeia.
Esse tipo de escrutínio não se aplica a outras regiões com a mesma intensidade. Por exemplo, ítalo-descendentes dos Estados Unidos raramente são tratados com desconfiança, embora utilizem os mesmos mecanismos legais para o reconhecimento da cidadania.
Sensacionalismo e preconceito
A cobertura distorcida do caso Milei reflete um preconceito velado e o uso de narrativas políticas para questionar direitos legítimos. Ao invés de informar e esclarecer, parte da imprensa italiana opta por alimentar divisões e estigmas contra comunidades sul-americanas, ignorando que o iure sanguinis é um princípio legal universal e igualitário.
Se há algo a questionar, é a escolha de transformar um direito em polêmica, especialmente contra uma das comunidades que mais mantém vivas as raízes culturais e históricas da Itália no exterior.