Um engano, uma traição de confiança, na origem da separação entre povos e lugares diferentes. É a história de “kapewe pukeni” (jacaré-ponte), o mito narrado pelo coletivo indo-brasileiro Movimento dos Artistas Huni Kuin (Mahku) no mural de mais de 700 metros quadrados que cobre a fachada Pavilhão Central (Giardini).
A obra foi realizada por ocasião da 60ª Exposição Internacional de Arte da Bienal de Veneza, batizada de “Stranieri Ovunque” (“Estrangeiros por toda parte”), entre 20 de abril e 24 de novembro.
É uma ode à cor, às formas simples de árvores, pássaros, peixes, terras unidas por um gigantesco jacaré.
Em troca de comida, seu dorso era usado pelos homens para passar de uma terra à outra, mas quando lhe deram de comer um pequeno animal como ele, o jacaré se enfureceu e afundou.
Uma obra de grande impacto em seu sabor quase naif. Um tipo de metáfora às pessoas que se veem tendo que lidar com a separação de suas origens, com o sentir-se “estrangeiro”, com estar fora dos esquemas tradicionais de um pertencimento nacional ou de gênero.
“Migração” e “descolonização” são duas das palavras-chave da mostra curada pelo brasileiro Adriano Pedrosa, entre os Giardini e o Arsenale de Veneza, antigo estaleiro que abriga mostras da Bienal.
Questões que falam de partes do mundo, especialmente a América do Sul, por um longo tempo à margem da história escrita por outros países ditos desenvolvidos.
Parece se desenvolver como uma única forma orgânica, com várias ramificações internas, às vezes sem fronteiras limitadas, a exposição realizada por Pedrosa, que escolheu articular o tema através dos trabalhos de 331 artistas, em grande parte externos aos complexos sistemas da arte contemporânea e presentes na Bienal pela primeira vez.
“Stranieri ovunque” toma forma assim, no interior de dois núcleos temáticos (Histórico e Contemporâneo) com as obras espaçadas no tempo e falando linguagens artísticas de terras deixadas por tempo demais na periferia, não euro-americanas, com muitos tecidos, pintura, escultura e pouco digital.
Pedrosa, primeiro curador da Bienal proveniente da América do Sul, desenvolveu um caminho que dá destaque a artistas queer, muitas vezes ostracizados por seus movimentos entre diferentes sexualidades ou gêneros, outsiders à margem do mundo da arte, indígenas, tratados como “estrangeiros na pátria”.
Entre eles, há muitos exemplos de ligações familiares, com trabalhos de pais e filhos: por exemplo Fred e Brett Graham, ou Santiago e Rember Yahuarcani.
“Esta edição da Mostra abriga fragmentos de beleza marginalizada, excluída, punida, cancelada por esquemas de geopensamento dominante”, destacou em seu discurso o novo presidente da Bienal, Pietrangelo Buttafuoco, destacando ainda que Veneza “é berço doce de conhecimento e comunicação entre povos, etnias e religiões” e é a praça natural “para classificar novos pontos de vista”.
Nos Giardini e no Arsenale, recebe os visitantes a placa neon que dá título à exposição, obra do coletivo Claire Fontaine. Uma sala do Pavilhão Central, no interior do Núcleo Histórico, é reservada aos artistas italianos que trabalharam no exterior, muitas vezes na América Latina. (ANSA)