Muita gente tem na cabeça um lugar e época no passado que gostaria de ter vivido.
Por Tim Vickery | Colunista da BBC News Brasil
Na minha experiência, a maioria deseja ir bem longe, para uma civilização antiga. Eu não. Me apego demais aos confortos contemporâneos de tomar banho com frequência, ou visitar uma dentista competente quando preciso.
A minha viagem no tempo é mais curta. Me vejo em Roma do fim dos anos 50. Estou desfrutando um cappuccino na Via Veneto, que nem Marcelo Mastroianni, vestindo um belo terno de marca Brioni, contemplando a decisão difícil de namorar ou Sophia Loren ou Gina Lollobrigida antes de sumir na noite na minha Vespa.
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Seria muito bom viver la dolce vita!
Isso tem tradição. Não sou o único entre os meus conterrâneos a pensar assim. O próprio Karl Marx acusou os ingleses de sofrer de “silly italianism“, mas quando se cresce num clima cinzento isso é uma armadilha fácil.
Sou vítima das minhas circunstâncias. Lembro de tardes de domingo chuvosos na minha infância quando estavam passando na televisão um daqueles filmes da época “Hollywood no rio Tibre”, a época de 1953 a 1963, quando os americanos foram para Roma para contar histórias cheias de sol e de leveza. Plantaram uma semente.
Nunca consegui ir para lá. Duas vezes estava com a passagem na mão. Na primeira, em 2011, apareceu, bem na hora, uma nuvem de cinzas vulcânicas que impediu o voo. E na segunda, cinco anos mais tarde, tive problemas durante a recuperação de uma cirurgia e fui obrigado a cancelar. Recebo isso como uma mensagem dos deuses romanos – a realidade não vai corrensponder ao sonho. Melhor ficar com o sonho.
Claro que a imagem da la dolce vita não passa de um mito, uma visão glamorizada. O filme (La Dolce Vita, com Mastroianni e Anita Ekberg, de Federico Fellini, foi lançado no início de 1960) funciona por um lado como uma condenação da vida moderna e da superficialidade de seus valores. Mas, como é tão frequente com grandes obras de arte, há uma ambiguidade no ar.
Enquanto o roteiro critica, a câmera está apaixonada pela vitalidade desse novo mundo; adora a energia e esperteza dos paparazzi (uma palavra que o filme inventou e apresentou ao mundo) e se encanta com a Via Veneto, com o glamour de suas celebridades.
Fellini se empolgou com a ideia de fazer o filme exatamente 60 anos atrás, agosto de 1958, quando brigas entre fotógrafos e atores fizeram manchetes. Ele foi atraído justamente pela novidade de tudo.
Aquelas Vespas, sem o que fica impossível imaginar a Roma da época, começaram a ser fabricadas somente em 1946. O filme A Princesa e o Plebeu, de 1953, foi importante em divulgar e popularizar essa nova forma de transporte urbano.
Nesse filme, Gregory Peck ainda está vestindo um terno dos velhos tempos, tão grande que daria para uma família inteira se esconder ali dentro. Elegância zero. Já em La Dolce Vita, Mastroianni veste o modelo mais novo, mais colado ao corpo da marca Brioni, uma empresa que abriu somente depois da Segunda Guerra Mundial.
Aliás, a noção de estilo italiano pertence ao pós-guerra, uma invenção de um visionário que entendeu que o país era capaz de produzir linhas de roupas coloridas e informais, mais alinhadas com o gosto americano em comparação com a frieza de Paris, que dominava o cenário da moda até então.
Dez anos antes, seria impossível conceber um filme italiano explorando temas da modernidade e problemas existenciais da prosperidade.
Os filmes italianos no final da década de 40 mergulharam nos assuntos da pobreza e foram feitos no estilo “neorrealista” que teve grande influência numa geração de cineastas brasileiros.
Nada a ver com La Dolce Vita, em que Fellini estava fascinado com os exageros de uma época nova. Ele estava observando um país enfim livre das restrições do fascismo e da guerra, uma sociedade em que avanços tecnológicos estavam trazendo novas maneiras de viver e pensar, que estava em pleno desenvolvimento, passando pelo período conhecido como il boom (a explosão, em tradução livre).
Quase 30% da população migrou, geralmente do sul agrário para o norte industrial. Esse período ficou conhecido como “a era da mala de papelão”. Mas os agora ex-camponeses contribuíram para um crescimento, durante os anos 1950, de mais de 100% da produção industrial e de 78% do PIB italiano.
Impressiona bastante a velocidade da mudança, a maneira que 1958 foi tão diferente de 1948, apenas dez anos antes. Impressiona e também inspira.
Seria muito bom se fosse possível capturar essa energia e trazê-la para nossa realidade. Vou continuar sonhando com uma dolce vita para todos!
Tim Vickery é colunista da
BBC News Brasil e formado
em História e Política pela
Universidade de Warwick.