O ator, diretor, dramaturgo e poeta Gianfrancesco Guarnieri nasceu em Milão, na Itália, e chegou ao Brasil com dois anos de idade, para marcar a história do teatro e do cinema no país. Exemplo típico de um homem com sangue italiano que foi adotado por seu novo país e devolveu o carinho com uma contribuição enorme às artes nacionais.
Gianfrancesco Sigfrido Benedetto Martinenghi De Guarnieri nasceu na capital da Lombardia no dia 6 de agosto de 1934. Filho do maestro Edoardo Guarnieri e da harpista Elsa Martinenghi, chegou ainda criança ao Brasil com a família, que decidiu se mudar para o país em 1936, estabelecendo-se primeiro no Rio de Janeiro.
Desde adolescente, Guarnieri já demonstrava bem as duas vocações que levaria para o resto da vida: o teatro e a militância política. Com apenas 13 anos começou a escrever para o jornal da Juventude Comunista.
Expulsão do colégio
A primeira tentativa de escrever uma peça teatral veio no colégio de padres Santo Antônio Maria Zacharias. Com o nome de Sombras do Passado, a peça tinha como um dos personagens um vice-reitor prepotente, interpretado pelo próprio Gianfreancesco Guarnieri.
Os alunos logo reconheceram no personagem o vice-reitor do colégio, apesar de o tema da montagem nada ter a ver com a instituição. Começaram a gritar seu nome durante o espetáculo e aplaudiram muito ao final, mas Guarnieri acabou expulso.
No início da década de 1950, a família se mudou para São Paulo, onde Guarnieri começou a fazer teatro amador com Oduvaldo Vianna Filho (Vianninha) e um grupo de estudantes.
Guarnieri e o Teatro Arena
Em 1955, o grupo criou o Teatro Paulista do Estudante, sob orientação de Ruggero Jacobbi. No mesmo ano, ele ganhou seu primeiro prêmio de ator como protagonista da peça Está lá Fora um Inspetor, de Priestley.
No ano seguinte, em 1956, o TPE uniu-se ao Teatro de Arena, fundado e dirigido por José Renato. Foi já no Teatro de Arena que Guarnieri ganhou um dos mais cobiçados prêmios da época, o APCA de revelação de ator no papel de George na peça Ratos e Homens, de Steinbeck, dirigida por Augusto Boal.
Na mesma época foi chamado pelo diretor Roberto Santos para fazer sua primeira atuação em cinema, no filme O Grande Momento, que dava o pontapé inicial no movimento Cinema Novo.
Eles Não Usam Black-Tie
Sua primeira peça como dramaturgo foi Eles Não Usam Black-Tie, encenada em 1958 pelo Teatro de Arena. No texto, ele uniu suas vocações de ator e dramaturgo com a veia de militante político, inaugurando no teatro um novo caminho de investigação da realidade brasileira.
A peça, que explorava as relações trabalhistas do ponto de vista de uma greve de operários, foi dirigida por José Renato e o elenco contou com talentos que começavam a despontar no teatro brasileiro, como o próprio Guarnieri, Lelia Abramo, em sua estreia profissional, Flavio Migliaccio e Milton Gonçalves.
A obra colocou a greve de operários em discussão na cena brasileira pela primeira vez e lhe rendeu diversos prêmios, incluindo o Prêmio Governador do Estado de revelação de autor e o Prêmio APCA de ator.
Sucesso no cinema
O sucesso se repetiria mais de 20 anos depois, com a adaptação da peça para o cinema, lançada em 1981, com direção de Leon Hirszman. O filme recebeu seis prêmios nacionais e dez internacionais, entre eles o Leão de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Veneza, para Leon e Guarnieri.
Se na montagem teatral Guarnieri interpretou o filho fura-greve Tião, que trai os interesses coletivos em busca da solução individual, no filme ele assumiu o papel de Otávio, o pai, operário e líder sindical com vasto currículo de lutas e prisões.
Em diversas entrevistas, o autor creditou à empregada Margarida, que cuidou dele na infância e adolescência, o “aprendizado” da cultura popular, da vida nas ruas e nas favelas cariocas.
Foi na mãe de Margarida, que era analfabeta, morava no morro e tinha grande sabedoria, que Guarnieri se inspirou para criar Romana, a matriarca interpretada por Lelia Abramo no teatro e por Fernanda Montenegro no cinema.
Peças de Guarnieri
Nos anos seguintes ao estrondoso sucesso em sua estreia como dramaturgo, Guarnieri seguiu escrevendo peças, como Gimba, A Semente, Ponto de Partida, O Filho do Cão, Marta Saré, Castro Alves Pede Passagem, Arena Conta Zumbi e Arena Conta Tiradentes – essas duas em parceria com Boal – e Um Grito Parado no Ar.
A Semente estreou em 1961, no Teatro Brasileiro de Comédia, com direção de Flávio Rangel. A peça, de cunho abertamente político e inteiramente fora dos padrões do TBC, abordava de forma contundente a militância comunista, criticando tanto os métodos da direita quanto da esquerda.
Embora contasse com atores consagrados, como Leonardo Villar, Cleyde Yáconis, Stênio Garcia e Natália Timberg, além do próprio Guarnieri, a peça teve muitos problemas com a censura, o que acabou esfriando o interesse dos frequentadores do então chamado Templo Burguês do Teatro Paulista.
“O texto constitui claro e audacioso incitamento à subversão da ordem pública, objetivando solapar as suas bases e a estrutura do regime democrático vigente no País”, dizia o parecer do censor. O golpe militar nem tinha estourado e Guarnieri já tinha problemas com a censura.
O curioso é que ele criticava no texto a rigidez do Partido Comunista e a excessiva determinação de líderes da esquerda, que beirava a indiferença com o “lado humano” das causas políticas. A peça acabou sendo encenada, mas saiu de cartaz rapidamente.
Guarnieri no cinema
No cinema, além de protagonizar O Grande Momento, Gianfrancesco Guarnieri também participou de filmes como O Jogo da Vida (1976), de Maurice Capovilla, Gaijin – Os Caminhos da Liberdade (1980), de Tizuka Yamasaki, Eles Não Usam Black-Tie (1981), de Leon Hirszman, A Próxima Vítima (1983), de João Batista de Andrade, Beijo 2348/72 (1990), de Walter Rogério e O Quatrilho (1995), de Fábio Barreto.
Seu último filme foi Contos de Lygia, de 1998, no qual contracenou com Natália Thimberg sob direção de Del Rangel.
Televisão
Na televisão, Guarnieri ajudou o veículo a dar seus primeiros passos, seja no Grande Teatro Tupi ou nas primeiras novelas. Um de seus personagens inesquecíveis foi Tonho da Lua, o maluquinho da novela Mulheres de Areia, exibida pela TV Tupi entre 1973 e 1974. O papel seria vivido por Marcos Frota na regravação da Rede Globo, em 1993.
Outro personagem inesquecível foi Jejê, apelido de Jerônimo Machado, o trambiqueiro da novela Cambalacho, exibida pela Rede Globo em 1986, na qual contracenava, mais uma vez, com a amiga Fernanda Montenegro.
Fez uma participação especial na novela Terra Nostra (1999), como o “pai italiano” de Giuliana, personagem vivida por Ana Paulo Arósio.
Gianfrancesco Guarnieri atuou em diversas outras novelas globais, como Vereda Tropical (1984-85), de Carlos Lombardi, Mandala (1987-88), de Dias Gomes e Que Rei Sou Eu? (1989), além de minisséries como Anos Rebeldes (1992), e Incidente em Antares (1994).
Fez também o papel do carinhoso e divertido avô Orlando Silva, da série juvenil Mundo da Lua (1991-92), exibida pela TV Cultura.
Vida pessoal de Guarnieri
Seu primeiro casamento foi em 1958, com a jornalista Cecília Thompson, com quem teve dois filhos, Paulo e Flávio Guarnieri, também atores.
Com sua companheira dos últimos 40 anos, a socióloga Vanya Sant´Anna, teve mais três filhos, Cláudio (Cacau) e Mariana, que também seguiram carreira teatral, e seu mais novo, Fernando Guarnieri.
Gianfrancesco Guarnieri gravava no Teatro Oficina a telenovela Belíssima, da Rede Globo, na qual interpretava o personagem Pepe, no dia 2 de junho de 2006, quando se sentiu mal e foi internado no Hospital Sírio-Libanês.
Ele morreu de insuficiência renal crônica cinquenta dias depois, no dia 22 de julho, aos 71 anos. Foi enterrado no cemitério Jardim da Serra, na cidade de Mairiporã, onde morava.