O jurista Wálter Fanganiello Maierovitch classificou neste domingo (13), em coluna publicada no UOL, o decreto-lei 36 — que limita a cidadania italiana por jus sanguinis — como uma “medida populista e juridicamente frágil”. Assinada pelo vice-premiê Antonio Tajani, a norma entrou em vigor em 28 de março de 2025 e pode atingir milhões de descendentes fora da Itália, inclusive no Brasil.
Para Maierovitch, a medida representa “a destruição da italianidade”, ao romper um elo histórico entre os imigrantes e seu país de origem.
“Italianidade é mais que um passaporte. É alma, memória, identidade. É o ‘ser e sentir-se italiano’, transmitido de geração em geração por meio da língua, do dialeto, dos gestos, da comida, da música, das festas, da religiosidade e da ética comunitária”, escreveu o jurista, professor e ex-desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.
“Tiro no coração da Itália”
Para Maierovitch, que também é comentarista no quadro Justiça e Cidadania, da Rádio CBN, o decreto é uma resposta populista a fraudes no processo de reconhecimento da cidadania. Em vez de fortalecer os mecanismos legais contra irregularidades, a norma pune descendentes legítimos.
“Limitar o jus sanguinis é, em última instância, matar a italianidade. É negar identidade, origem, cultura. É transformar ‘os nossos’ em estrangeiros. É um tiro no pé — ou melhor, um tiro no coração da própria Itália”, alertou.
O jurista lembra ainda que o jus sanguinis é parte integrante da tradição jurídica italiana e que a Constituição de 1948, embora não o mencione diretamente, protege os direitos ligados à cidadania e veda sua retirada.
“Ninguém pode ser privado da cidadania, declara o artigo 22 da Constituição italiana”, ressaltou.
Consequências internacionais
O decreto afeta não só o vínculo com a Itália, mas também o acesso à cidadania europeia. Ao cortar o reconhecimento de italianidade, o país retira de seus descendentes o direito de circular e viver em qualquer nação da União Europeia, conforme previsto no Tratado de Maastricht.
A medida também retroage para casos já reconhecidos, o que, segundo Maierovitch, compromete a segurança jurídica e viola princípios constitucionais fundamentais.
“Tajani, ao ignorar isso, atenta contra a legalidade democrática”, concluiu o jurista.

Leia o artigo na íntegra
Decreto que exclui cidadania italiana discrimina e revolta descendentes
Ensina a sabedoria popular que o “mundo dá voltas”. Nos anos 1990, o homem mais rico da Itália, Silvio Berlusconi, então empresário de sucesso e figura polêmica, começou a cultivar o sonho de se tornar primeiro-ministro com o seu partido recém-criado, o Forza Italia.
Ele ainda não imaginava ser o protagonista dos escândalos do “bunga-bunga” e do caso “Ruby, ruba-cuore”, envolvendo uma menor marroquina que ele, em tentativa surreal de justificar a situação, disse ser sobrinha do ditador egípcio Mubarak.
Para conquistar o poder, Berlusconi sabia que precisava vencer Romano Prodi, o respeitado professor universitário e então líder da centro-esquerda. Com típica astúcia política — ou maquiavelismo explícito —, patrocinou o reconhecimento do voto dos ítalo-descendentes residentes no exterior. Criaram-se circunscrições eleitorais em diversos continentes e os consulados foram instruídos a acelerar o reconhecimento das cidadanias por jus sanguinis. Os descendentes, até então ignorados, passaram a ser úteis — eleitoralmente úteis.
A Itália já adotava o critério do jus sanguinis —o direito de sangue— como base para a transmissão da cidadania. Essa tradição antecede a unificação de 1861 e foi reforçada pela Constituição republicana de 1948, cujo artigo 22 declara que ninguém pode ser privado da cidadania.
No entanto, apesar da mobilização externa, nas eleições venceu Prodi, não Berlusconi. A manobra falhou. Mas o mundo deu mais uma volta. Do legado de Berlusconi surgiu a liderança de Antonio Tajani, hoje vice-premiê e ministro das Relações Exteriores no governo de Giorgia Meloni, líder do partido Fratelli d’Italia e ex-integrante da juventude fascista.
É Tajani quem assina o polêmico decreto-lei 36, de 28 de março de 2025. Aprovado em regime de urgência —sem que houvesse qualquer urgência real— o decreto limita drasticamente a transmissão da cidadania por jus sanguinis, sobretudo a partir da segunda geração, e aplica efeitos retroativos que ameaçam direitos já adquiridos por descendentes no mundo inteiro.
O mesmo partido Forza Italia, que antes incentivava a cidadania para ganhar votos no exterior, agora se transforma no Forza Italia que “taglia la cittadinanza” —corta a cidadania. “O tempora, o mores!”, gritaria Cícero, cujo busto ainda repousa no Senado italiano e cujo espírito jurídico parece ter sido ignorado.
Italianidade
Italianidade é mais que um passaporte. É alma, memória, identidade. É o “ser e sentir-se italiano”, transmitido de geração em geração por meio da língua, do dialeto, dos gestos, da comida, da música, das festas, da religiosidade e da ética comunitária. É algo que se herda com naturalidade e se transmite com afeto.
Quer sentir italianidade? Leia “Brás, Bexiga e Barra Funda”, de António de Alcântara Machado. No bairro da Barra Funda, reduto de imigrantes do Mezzogiorno, nasceu este colunista. São Paulo, a maior cidade italiana fora da Itália, respira italianidade. Seu colégio Dante Alighieri, o maior fora da Itália, nunca pediu um centavo ao governo italiano
Rodolfo Crespi, industrial e imigrante, fundou o Juventus da Mooca: escolheu o nome de um time e as cores de outro —Torino. Um gesto simbólico da unidade na diversidade da identidade peninsular.
Ao cortar a cidadania, Tajani corta esse elo. Condena a italianidade à extinção em poucas gerações.
Cidadania e sua alma
A cidadania é, juridicamente, o status que vincula uma pessoa a um Estado. No caso da Itália, porém, há um elemento intangível: a alma da cidadania é a italianidade.
Foi essa alma que confortou os imigrantes diante da saudade e da distância. É ela que leva os descendentes, mesmo inconscientemente, a preferir um espresso Illy, uma massa Barilla, um molho Mutti. Eles são propagandistas naturais do “made in Italy”
O espírito do oriundo é, muitas vezes, o do partigiano — o resistente, o defensor da liberdade. Luciano Canfora, grande intelectual italiano, escreveu em 2025: “Il fascismo non è mai morto” (o fascismo nunca morreu). O decreto Tajani é, em sua essência, autoritário. Nele ecoa um passado que a Constituição de 1948 prometeu enterrar.
Piero Calamandrei, um dos pais dessa Constituição, ensinou que ela nasceu onde caíram os partigiani. Cada trecho do texto constitucional é herança de luta e sacrifício. Ela veda a discriminação, assegura a igualdade e garante os direitos fundamentais. E, embora não cite explicitamente o jus sanguinis, este está enraizado na tradição jurídica italiana, consolidada por séculos de prática.
Tajani, ao ignorar isso, atenta contra a legalidade democrática.
Ao cortar a cidadania, a Itália não só transforma seus descendentes em estrangeiros no próprio solo ancestral. Também os torna, por extensão, estrangeiros em todos os países da União Europeia, graças ao Tratado de Maastricht. Ou seja: milhões de descendentes perdem a cidadania italiana e, com ela, a europeia.
E tudo isso com a justificativa de combater a “indústria da cidadania”.
Criminalidade organizada
Mas não é com um decreto-lei que se combate fraude. Para isso existem o direito penal, o Ministério Público e a polícia judiciária. A Itália tem experiência e competência no enfrentamento da criminalidade organizada. Já realizou operações que desmontaram esquemas fraudulentos de venda de cidadania com prisões, condenações e cancelamentos de documentos.
O Brasil, por sua vez, tem tratado de cooperação judiciária com a Itália desde os tempos de Fernando Henrique Cardoso. Também permite a extradição de naturalizados em caso de crimes graves.
Em vez de legislar com populismo, bastaria aplicar boas práticas administrativas, como o credenciamento oficial de prestadores de serviços jurídicos e despachantes. A repressão deve recair sobre os criminosos, não sobre inocentes descendentes legítimos.
O decreto-lei 36 não resolve o problema. Agrava-o. É uma medida populista, juridicamente frágil, socialmente injusta e historicamente míope. Limitar o jus sanguinis é, em última instância, matar a italianidade. É negar identidade, origem, cultura. É transformar “os nossos” em estrangeiros. É um tiro no pé — ou melhor, um tiro no coração da própria Itália.
Publicado no Uol