* Por Luigi Minari
O Estado italiano não pode negar a cidadania iure sanguinis (por direito de sangue) àqueles que adquiriram outra cidadania por nascimento no exterior. Essa forma de exclusão configura uma discriminação de fato, incompatível com os princípios constitucionais, europeus e internacionais que regem a dignidade da pessoa humana e a igualdade perante a lei.
No cerne da identidade jurídica italiana, vive um princípio tão antigo quanto essencial: o ius sanguinis. Quem descende de cidadãos italianos é, por direito originário, cidadão italiano. Não se trata de uma concessão graciosa do Estado, mas de um reconhecimento jurídico intrínseco, inscrito no próprio DNA normativo da República.
No entanto, o recente Decreto-Lei nº 36/2025 desafia esse princípio, ao introduzir uma distinção injustificável entre descendentes com cidadania exclusiva e aqueles com cidadania múltipla. O texto prevê que descendentes de italianos nascidos no exterior que possuam outra cidadania não sejam automaticamente considerados cidadãos italianos, salvo em condições específicas. Trata-se de uma penalização direcionada, sobretudo, a quem nasceu em países que aplicam o ius soli, como Estados Unidos, Argentina ou Brasil.
Essa medida não só representa uma discriminação indireta, como viola frontalmente o princípio da igualdade substancial consagrado no artigo 3º da Constituição Italiana. Além disso, confronta o artigo 22 da Lei nº 91/1992, que proíbe a perda da cidadania quando isso leva à apatridia. A cidadania, portanto, deve ser analisada na relação entre o indivíduo e o Estado italiano — e não à luz da existência de um segundo passaporte.
A urgência que não existe
Mais grave ainda é o fato de que esse decreto não se reveste de urgência — condição indispensável para o uso legítimo do instrumento do decreto-lei. O suposto “excesso” de pedidos de cidadania não configura uma emergência nacional. Trata-se de um fenômeno previsível, crescente ao longo dos anos, e que jamais foi tratado com a seriedade necessária.
O governo italiano, longe de atuar para ampliar e modernizar os serviços consulares — que acumulam filas de espera de até 15 anos em alguns países —, opta por restringir direitos em vez de ampliar a capacidade de atendimento. Essa omissão deliberada revela uma escolha política: a de ignorar seus próprios cidadãos no exterior enquanto promove discursos de identidade nacional seletiva.
O exemplo espanhol
Nesse cenário, vale olhar para a Espanha, que tem seguido o caminho oposto. Por meio da chamada Lei da Memória Democrática, o governo espanhol tem incentivado ativamente o reconhecimento da cidadania a descendentes de espanhóis emigrados. A lógica é clara: acolher, incluir, reconstruir laços históricos e culturais com sua diáspora. Ao fazer isso, a Espanha reconhece que a cidadania é mais do que um vínculo jurídico — é uma ponte entre gerações, continentes e culturas.
Cidadania não é privilégio
A Corte de Justiça da União Europeia, na decisão Rottmann (C-135/08), já afirmou que a cidadania nacional não pode ser revogada sem considerar seu impacto sobre os direitos derivados da cidadania europeia. Do mesmo modo, a Corte Europeia de Direitos Humanos, no caso Genovese vs. Malta (nº 53124/09), garantiu que até mesmo os nascidos fora do território têm direito a tratamento igualitário.
Alguns tentam justificar a medida com base na teoria do genuine link — o “vínculo genuíno” entre pessoa e Estado — originada no caso Nottebohm (CIJ, 1955). Mas essa teoria se aplica exclusivamente ao direito internacional entre Estados, não aos vínculos internos de cidadania. A Itália adotou, consciente e deliberadamente, o ius sanguinis como base de sua legislação. Invocar agora critérios subjetivos para negá-lo representa uma incoerência jurídica e institucional.
Autores respeitados como Paul Weis e Peter Spiro já alertaram que o genuine link não se aplica a sistemas que preveem a transmissão automática da cidadania. E a própria Corte Europeia, no caso Karassev vs. Finlândia, deixou claro: a cidadania é um direito fundamental, que não pode ser restringido com base em interpretações arbitrárias ou discriminatórias.
Um pacto de pertencimento
Se o Estado italiano reconhece o direito à cidadania iure sanguinis mesmo após gerações, não pode agora restringi-lo com base em critérios identitários ou sociológicos. Isso significaria romper com a coerência normativa da República e minar a confiança dos cidadãos — dentro e fora da Itália — nas instituições.
Como escreveu o jurista Giovanni Pugliese, “a cidadania não pode ser reduzida a um prêmio para quem se assemelha ao cidadão ideal, mas é uma responsabilidade do Estado para com quem nasce de si mesmo”. E, como tal, não se pode ser menos italiano por também se ser brasileiro, argentino ou americano.
O que está em jogo não é apenas um passaporte. É o respeito a um pacto de pertencimento que atravessa o tempo, as fronteiras e o sangue.

Luigi Minari é advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo, advogado português perante o Conselho de Faro e avvocato stabilito italiano no Fórum de Bari.