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Artigo – Direito Penal no Brasil e na Itália: uma comparação necessária?

Settimino Mineo, considerado o novo chefe da máfia siciliana Cosa Nostra, preso em 2018. Foto: Lusa

Italianos modificaram as leis para criar um sistema específico antimáfia

Faculdade de Jurisprudência da Universidade de Estudos de Palermo, Ilha da Sicília, Itália, antiga Magna Grécia! É uma quinta-feira, começo de junho, quase três da tarde, e as exposições sobre o fenômeno mafioso e as descrições dos institutos jurídicos criados para tratar da Cosa Nostra já estão perto do fim.

Quase 40 horas ouvindo professores, procuradores, juízes, policiais e pesquisadores – visitando bancos, Tribunais e sala de julgamento – permitem uma ideia do que é a máfia, de onde ela vem, como ela age e o que tem sido feito para que ela chegue ao fim.

Olhando a coluna de homenagens aos juízes que foram mortos, vítimas de atentados, eu pego a xícara de café e me recordo de que esta é a sexta vez que aqui venho. Ao meu lado, o professor que pesquisa o fenômeno mafioso de há muito e que hoje é nosso anfitrião. Ele me observa e pergunta : – estás pensativo, Ney?

Sorrio e brinco: – cansado… exposições todos os dias pela manhã e pela tarde…. e tem o vinho siciliano à noite.

Ele ri!

Mas o olhar viageiro em frente aos nomes de Giovanni Falcone e Paolo Borselino tem outra razão de ser: o meu pensamento ocupa-se de como utilizar a experiência italiana de combate ao crime organizado para cuidar do fenômeno criminal brasileiro. Como reduzir a violência no Brasil a partir dessa atitude siciliana?

Nós vivemos em um país onde se mata, se encarcera e se morre em quantitativos assustadores! Como pensar no contexto de um país que possui organizações criminosas portentosas, vê o poder do Estado ausente em diversas zonas ao tempo em que se alastra a corrupção?
Vicenzo Militello me entende e compartilha comigo preocupações. Ele sabe que não se pode importar simplesmente um modelo para realidade estrutural e culturalmente diversa. Ele bem sabe que a importante metodologia do direto criminal comparado não produz bons resultados em apenas se copiando soluções.

Coloco a xícara de café sobre o balcão e sorrio.

Pensar sobre experiências da humanidade ajuda-nos a entender quem somos e aonde vamos.

Mais um gole de café e refaço ao professor a pergunta que fiz em 2011, ano em que comecei a tratar do fenômeno mafioso aqui mesmo, neste prédio: – qual o percentual de lojas e de negócios que pagam ainda hoje a prestação regular para a Cosa Nostra?

Segundo ele, cerca de 70% dos comércios sicilianos ainda pagam para a máfia, embora a maioria de forma ocasional. A obediência ainda faz parte do dia a dia dos sicilianos. Mesmo com todas as alterações legislativas e com todo o empenho policial, a máfia ainda existe, ainda controla territórios, ainda é forte.

Embora não estejamos mais vivendo o tempo dos atentados e vendo carros bomba, explosões e homicídios nas estradas e nas ruas, não se pode dizer que a máfia desapareceu. Não é por acaso que ela deriva da expressão árabe “mafía” e significa “aquilo que não existe”.

Em 2011 dizia-se que 92% pagavam prestação regular e que movimentos como “addiopizzo” eram construção importante. Seguem sendo importantes! Socialmente, resistir à sedução e à opressão da máfia é o mais importante, mas é preciso ter um Estado e uma Polícia com os quais contar!

Temos isso no Brasil? Não creio! O fenômeno das milícias deriva da corrupção das polícias, logo, não parece razoável acreditar na sua própria atuação na busca desse objetivo.

Os italianos modificaram suas leis para criar um sistema específico antimáfia. Fez-se um sistema jurídico autônomo, em
paralelo ao modelo geral, numa autêntica imposição de um direito penal do inimigo.

Se a ‘Ndrangheta, a Camorra, a Cosa Nostra e a Sacra Corona Unita negam o Estado e tentam colocar-se como substitutivos dele, então os inimigos da legitimidade não podem ter o mesmo tratamento dos que se desviam, mas permanecem reconhecendo o próprio Estado.
Os italianos criaram um sistema jurídico paralelo de tratamento do fenômeno mafioso. Bem mais duro, mais abrangente e com o claro objetivo de criminalizar todo o espaço de atuação da organização de tipo mafioso.

A escolha de uma atividade criminosa como deslegitimadora do Estado a ponto de justificar um sistema penal específico é o exercício pronto e acabado do direito penal do autor, imposto para punir o inimigo. Ele é claramente estabelecido para tratar com exclusividade o que mais agride a sociedade organizada.

Será o caso de se criar no Brasil um sistema jurídico penal paralelo para as milícias e para as organizações criminosas de tráfico de entorpecentes e assaltos a bancos?

Algumas modificações no direito italiano são relevantes. Participação em associação criminosa de tipo mafioso é um crime diferente do anterior porque aqui se busca punir mais severamente quem se associa a organizações mafiosas. Mais que isso, não é necessário provar o desejo de cometer crimes futuros, mas tão somente o desejo de aderir ao método mafioso.

Italianos explicam que optaram por este delito pelo só fator de que era quase impossível comprovar a adesão a um programa criminoso e, por essa razão, os chefes mafiosos terminavam sempre impunes. Dito de outra forma, a dificuldade probatória gerou a necessidade de de tipificar-se um crime paralelo.

Da mesma maneira, permitiu-se o concurso externo de crimes, que deu azo à possibilidade de criminalizar o ato daquele que minimamente auxilia a organização criminosa de tipo mafioso, mesmo cometendo ato neutro.

Criou-se também a agravante de facilitação mafiosa, pela qual se pune mais gravemente quem comete delito para facilitar as operações da Cosa Nostra ou Camora ou qualquer das organizações.

Esse trio de modificações no sistema jurídico declaradamente antimáfia foi levado a efeito, após análises de atos mafiosos que escapavam à punição judicial por falta de provas, tipificando, assim, toda e qualquer participação ou contato com essas atividades.

As medidas processais também foram modificadas de maneira que a indisponibilização e o confisco de bens, assim como as limitações pessoais a indivíduos acusados de delito de máfia, foram simplificadas.

Chegou-se ao ponto de se permitirem bloqueio e perda de patrimônio quando não se pode provar a origem lícita dos bens, numa inversão do ônus da prova.

Há também a prisão perpétua e a impossibilidade de contato não gravado com quem quer que seja dentro do cárcere: sistema de cárcere duro!

Juízes antimáfia e procuradores antimáfia são específicos e especialistas nesse exato assunto, numa luta e em um trabalho que não se confunde com as demais atuações no sistema jurídico geral.
Nada mais autoral e posicionado no sistema jurídico do que isso! Eleito um inimigo e uma atuação como inimiga, passou-se a criminalizar as condutas praticadas por aquele autor escolhido: o mafioso!

O mafioso siciliano – o “homem de honra da Cosa Nostra” equipara-se ao miliciano do Rio de Janeiro? Podemos ombrear o integrante da Cosa Nostra ao membro do PCC? Amigos dos Amigos e Família do Norte são organizações como a Camora ou Sacra Corona Unita?

Há diversas pesquisas a serem feitas, comparações jurídicas, análises sociológicas, visualizações de resultados… muito a saber e a compreender e a pensar antes de simplesmente crer-se que a importação dará resultado.

Não houve ainda sucesso absoluto pois a máfia existe e é forte!
Termino meu café e retorno à sala para a última das exposições! Vicenzo me acompanha e já pensamos no nosso sétimo encontro, para continuarmos pensando!

—–

 é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, professor da Universidade de Brasília (UnB), pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras.

Artigo publicado originalmente em Revista Consultor Jurídico

 

 

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