Demorou, mas a Itália descobriu que o crime organizado nunca foi território exclusivo dos homens
Amanhece no manicômio de Aversa, no sul da Itália. Tudo está tranquilo, corriqueiro, em paz. De repente, no correr do dia, uma forte explosão sacode a pasmaceira. Correria, pânico, desespero, ninguém sabe exatamente que barulho é aquele. Talvez um terremoto, pensam alguns. Em meio à bagunça, surgem brucutus empunhando metralhadoras. Eles penetram na ala reservada aos pacientes endinheirados graças ao enorme rombo na parede lateral do edifício, conseguido com alguns quilos de dinamite.
Não demora muito e os tipos estranhos já estão batendo em retirada, deixando para trás os escombros. A missão tinha sido cumprida. O poderoso chefão Raffaele Cutolo, líder da Nuova Camorra Organizatta, a famosa e sanguinária facção da máfia napolitana, estava livre. A espetacular fuga dominou os noticiários naquele verão de 1978. Quem, afinal, teria tido a audácia de retirar o mafioso do hospital para doentes mentais onde cumpria pena por mais de uma dezena de assassinatos, contrabando, narcotráfico e extorsão?
Alguns dias depois, mais um susto. Dessa vez, não só nos limites do manicômio, mas na Itália inteira – de norte a sul. A explosão derrubou um mito. Por trás da ousada ação, estava, conforme divulgou a polícia, Rosetta Cutolo, irmã de Raffaele e o segundo nome mais importante dentro da Camorra. Ou seja, a cena de filme tinha sido dirigida por uma poderosa chefona, coisa que os italianos nunca imaginaram sequer existir.
Cultura Machista
Para o país de cultura machista, o crime organizado era, até então, território de homens. Mulher não dava nem pitaco. Em filmes, livros e jornais, as mulheres da máfia sempre apareciam como indefesas coadjuvantes, esposas devotas de poderosos cappi, mães zelosas de filhos assassinos… “Um juiz de Palermo certa vez declarou que as mulheres não podiam ser culpadas por lavagem de dinheiro porque não possuíam autonomia e eram burras demais para tomarem parte nesse tipo de negócio”, diz a jornalista inglesa Clare Longrigg, autora do livro Mulheres da Máfia, que conta a trajetória de algumas das mais terríveis mafiosas da história. “Enquanto os cidadãos italianos, os juízes e a polícia insistiam em pensar desse modo reacionário, elas foram ganhando destaque em organizações como a Cosa Nostra e a Ndrangheta.”
O mito de que o crime organizado é coisa de macho confunde-se com a própria história da máfia. Em anos de existência, o papel principal nunca foi, pelo menos publicamente, delas. Nem mesmo Hollywood filmou esse lado, digamos, feminino da bandidagem. A máfia se consolidou na Sicília, em meados do século 19. Tudo começou por volta de 1860, na época da tumultuada unificação da Itália, até então uma colcha de retalhos, dividida em províncias independentes.
Para garantir seus latifúndios, os senhores de terra do sul da península convocaram meeiros para ajudá-los na tarefa de assegurar a propriedade intacta. Só que os capatazes foram bem além de sua função: passaram a controlar toda a região, explorando, de um lado, os camponeses e, de outro, os proprietários. Divididos em clãs, eles não respeitavam o poder local e apostavam na justiça com as próprias mãos.
Violência e sangue
No século 20, a máfia já havia se tornado uma sociedade secreta bem estruturada, quase tão lucrativa quanto uma grande empresa. Extorquia abertamente, na cara das autoridades, dinheiro de comerciantes e agricultores em troca de “proteção” – leia-se pagar o exigido para manter a vida. Quando milhares de italianos resolveram imigrar para os Estados Unidos, os mafiosos também cruzaram o oceano.
Em território americano – onde, aliás, nasceu a expressão Cosa Nostra, eles criaram uma rede de extorsão que se sustentava dos conterrâneos que chegavam da Europa. Mais tarde, com a Lei Seca, muitos chefões – e chefonas – conquistaram fortunas contrabandeando bebidas e, depois, traficando heroína e cocaína. Tudo regado à violência e sangue.
Ao passo que a máfia ganhava notoriedade, principalmente por causa de seus códigos de honra internos e regras rígidas que inspiraram uma série de filmes, os cappi tornavam-se cada vez mais famosos. Nomes como Al Capone viraram lendas no mundo todo. Enquanto isso, as mulheres agiam nos bastidores, protegidas pelo machismo.
Por isso, relatos como a da siciliana Maria Grazia Genova são tão raros. Nascida em 1909, ela foi presa 22 vezes e atuou diretamente numa guerra entre famílias rivais que resultou em cerca de 40 mortes. Mas a situação começou a mudar nas últimas décadas, quando a Justiça italiana passou a combater o crime organizado de forma mais dura.
Para tentar diminuir a criminalidade, teve de aceitar na marra a ideia de que existem, sim, muitas mulheres no comando da mafia. “Aprendi uma lição ao escrever meu livro: não subestimar as mulheres. Elas são ambiciosas, corajosas e, às vezes, mais astutas que os homens”, diz Clare. É só ler um pouco as biografias de algumas delas para saber que as “mammas” não brincam em serviço.
Olhos de gelo
Quando criou, nos anos 60, a Nuova Camorra Organizzata, que dominou até 1983 os territórios da antiga máfia napolitana, o cappo dei cappi Raffaele Cutolo não chamou nenhum homem de confiança para ser seu braço direito. Convocou para o posto a irmã mais velha, Rosetta Cutolo, que se tornou uma espécie de vice-presidente de uma das alas mais sangrentas da organização. Sua frieza e dedicação aos negócios fizeram com que ganhasse a alcunha de “olhos de gelo”.
Rosetta jamais soltava os cabelos, presos num malfeito rabo de cavalo, e sempre usava camisas masculinas. Ninguém nunca a viu acompanhada, mas dizem que abandonou um grande amor na juventude para cuidar do irmão. Enquanto Raffaele cumpria pena de 30 anos, era ela quem recolhia o dinheiro dos comerciantes e tratava diretamente com outros gangsteres.
Em 1980, por exemplo, representou Cutolo num importante encontro de cúpula entre a Nuova Camorra e a Cosa Nostra para pôr um fim a uma guerra entre seus membros. Rosetta era tão influente e temida que, mesmo quando resgatou o irmão de um manicômio, só ficou presa alguns dias. Segundo a justiça local, não havia provas para condená-la.
Durante uma batida em sua casa, em 1981, a polícia deparou-se com uma reunião de 15 auxiliares de Cutolo. A maioria acabou presa, exceto Rosetta, que conseguiu fugir misteriosamente pelos fundos. Durante dez anos, ela se manteve na clandestinidade, chefiando as operações de diversos esconderijos pela Itália.
A rede de influência de Rosetta e do irmão englobava juízes e outros poderosos. Tanto que a mafiosa foi milagrosamente inocentada pelo assassinato de Giuseppe Salvia, diretor do presídio de Poggioreale, em Nápoles. Giuseppe negara a Cutol mordomias como comer apenas refeições vindas de fora da cadeia e, por isso, morreu.
Rosetta escapou ilesa também da acusação pela morte de Vincenzo Casillo, segundo homem de Cutolo, suspeito de desviar dinheiro. Ela o matou com um carro-bomba. Não contente, mandou enterrar viva sua namorada em um pilar de cimento. Em 1993, entregou-se à polícia. Tinha então 55 anos de idade.
Baronesa da Cocaína
Poucas mulheres chegaram tão alto no mundo do narcotráfico quanto Patrizia Ferriero. No final da década de 80, ela comandava sozinha uma extensa rede que importava cocaína da América do Sul e distribuía na Europa. Volta e meia, visitava pessoalmente vários países para tratar com perigosos traficantes internacionais.
Nem a polícia podia com ela. Quando o marido Raffaele Stolder foi preso, Patrizia conseguiu que ele fosse transferido para um hospital luxuoso alegando supostos problemas renais. Era tudo uma farsa. Toda semana, ela colocava sangue de um doente de verdade na máquina de diálise para enganar os médicos.
Em 1990, Patrizia construiu uma verdadeira fortaleza em Nápoles. Mandou instalar em seu apartamento duas portas de aço, uma garagem isolada com controle remoto e assoalho falso com cofre. Só ela tinha a chave do lugar. Ao invadir o bunker, em 1991, a polícia encontrou, além de cocaína, várias calcinhas espalhadas pelo chão. Depois foi descoberto que a mafiosa usava o esconderijo também como local para encontros amorosos.
Loura Má
Na Via dei Tribunali, no coração de Nápoles, todos tinham um pôster de Tonino Capuano pendurado na sala. O cappo comandava os crimes na região e dominava um rentável esquema de agiotagem. Depois que foi assassinado pelos rivais da família Giuliano, sua mulher, Teresa Deviato, assumiu o poder.
Ela mostrou levar jeito para o negócio. Policiais costumavam dizer que Teresa tinha muito mais neurônios que o famoso companheiro. Por méritos próprios, passou a ser respeitada até pelos rivais. Seu “método de trabalho” ficou conhecido como stozzinaggio – ou estrangulamento: o comerciante que não pagasse a cota mensal em troca de “proteção” era estrangulado e, claro, a família perdia a loja. O que, aliás, acontecia com frequência, já que muitos não conseguiam arcar com os altos juros cobrados pela mafiosa de cabeleira loira.
Em 1995, Teresa teve uma conversa telefônica grampeada pela polícia. Nela, falava sem constrangimento sobre um de seus devedores. “Ele veio me contar que não vai mais me pagar. Daí eu disse: “E o que eu faço? encho você de pancada para conseguir o dinheiro? Acabei com ele”. Foi presa diversas vezes, entre 1992 e 1996, por aluguel de armas (inclusive para a família Giuliano, assassina do marido).
Mas a criminosa amargou uma série de tragédias familiares: o filho Marco morreu de overdose, e o outro, Vincenzo, foi condenado por assalto à mão armada e tentativa de assassinato. Anna, a irmã caçula, levou um tiro na cabeça. Suspeita-se que foi baleada pelo próprio filho de 16 anos.
A diva
Assunta Maresca era dona do título de Miss Rovegliano, uma vila nos arredores de Nápoles. Foi o suficiente para ganhar o apelido de Puppetta (“bonequinha”). Também chamada de A Diva, é uma das mais míticas mafiosas da história da Itália. Mimada e arrogante, cresceu cercada de cuidados pelos quatro irmãos da napolitana Camorra, que dominavam o mundo do crime no sul.
De tão arruaceiros e cruéis, os rapazes eram conhecidos como os irmãos Lampetielli (“relâmpagos”), por causa do incrível talento para lidar com facas. Apesar de ser a queridinha da família, Pupetta não teve uma vida fácil. Aos 18 anos, casou-se com o cappo Pasquale Simonetti. Pascalone (Pasqualzão), como era chamado, controlava os preços das verduras e frutas da região e exigia dos comerciantes sua parte nas vendas. Certo dia, levou um tiro no estômago de outro mafioso interessado nos negócios. No leito de morte, revelou à mulher o nome do assassino.
Já que a polícia preferiu não se envolver no caso, a viúva decidiu agir por conta própria: usando o mesmo revólver do marido, matou Antonio Espósito com uma chuva de balas. “Fazia oitenta dias que estávamos casados quando mataram meu marido a tiros. Oitenta dias depois, acabei com o homem que o assassinou. Eu tinha 18 anos e estava grávida”, contou Maresca no livro Mulheres da Máfia.
Pelo crime, Pupetta ficou 14 anos na prisão. Lá, longe das paparicações, deu à luz a Pasqualino. Mas a bonequinha jamais conseguiu controlar sua queda por criminosos perigosos: assim que saiu da cadeia, com 31 anos, apaixonou-se por Umberto Ammaturo, um camorrista que traficava, entre outros artigos, armas da Alemanha para a Líbia. Mais uma vez ela se deu mal. Pasqualino e Ammaturo não se davam bem, até que o filho de Pupetta desapareceu misteriosamente.
Mesmo suspeitando do marido, ela resolveu continuar casada, ajudando-o a comandar sua rede de tráfico internacional. A mafiosa virou celebridade na Itália ao tomar as rédeas dos negócios numa briga entre facções da Camorra.
Em 1974, quando Raffaele Cutolo, outro poderoso chefão, ameaçou matar os irmãos Lampetielle, Pupetta convocou a imprensa em uma entrevista histórica, na qual apareceu de terno de couro apertado e blusa desabotoada, para felicidade dos jornalistas. “Se Cutolo tocar em um só membro da minha família, matarei seus capangas, mulheres e filhos. Não hesitarei”, disse. Como represália, Cutolo fez com que ela fosse incriminada pela morte de um médico, o que lhe custou mais quatro anos no xadrez.
A sanguinária da Catânia
O telegrama misterioso foi interceptado pelos funcionários do presídio de segurança máxima de Gazzi, no leste da Sicília: “Meu amor, não vejo a hora de poder estar com você. Não se preocupe com nada, os cavalos estão em segurança no estábulo, porque está frio lá fora. Te amo.” Tratava-se de um bilhete cifrado para Antonio Cintorino, um mafioso condenado por assassinato.
A autora era sua mulher, Maria Cintorino, que assumiu os negócios do marido com apenas 24 anos. Inteligente e bonita, ela decidiu se tornar líder dos criminosos da Catânia, chefiando um bando de homens conhecidos por circular com pistolas iugoslavas. Sua coragem ganhou fama em terras sicilianas, principalmente quando um gângster conhecido como Saro, ex-parceiro do marido, tentou tomar o poder.
Maria decidiu massacrar o inimigo com uma bomba. Organizou diretamente a emboscada, cuidando sozinha de todo o apoio logístico. Mas a polícia descobriu a trama e Maria acabou no xadrez. Em fevereiro de 1995, foi presa novamente, acusada de traficar arma e drogas. No ano seguinte, a Justiça transferiu-a para uma ala de confinamento destinada a mafiosos de alta periculosidade.
A Viúva Negra
Ninguém do clã Moccia ousava dar um passo sem a permissão de Anna Mazza. Até 1976, ela era apenas a fiel mulher de Genaro Moccia, chefão de Afragola, no sul da Itália. Com o brutal assassinato do marido por um mafioso rival, ela tornou-se a “viúva negra”.
Sua primeira ação como chefe do clã foi mandar o próprio filho, Antônio, de apenas 13 anos, matar o assassino do pai. O garoto cumpriu a ordem em plena luz do dia, na porta do fórum de Nápoles. Após atirar, Antônio foi baleado por um segurança.
Em depoimento à polícia, a mãe negou que tivesse incitado o menino a cometer o crime. Mas fez questão de declarar: “A única coisa que meu filho fez de errado foi atirar nele em um lugar decente. Devia era ter retalhado o sujeito numa ruazinha suja qualquer”.
Sob o comando da matriarca, os Moccia criaram a Nuova Famiglia, para lutar contra a Nuova Camorra Organizzata, de Raffaele Cutolo. O filho mais velho de Anna, Ângelo, virou líder da organização, que controlava um serviço de extorsão e arrecadava milhões de dólares.
A Justiça italiana fez com que a Viúva Negra se tornasse a primeira mulher condenada com o exílio interno. Do sul, teve de se mudar para Formia, perto de Roma. Detalhe: meses depois de ter chegado à cidade, a polícia local registrou um significativo aumento na criminalidade.