Entre o passado das grandes migrações e o presente marcado por milhares de pedidos de cidadania, a relação entre o Vêneto e a América do Sul segue viva. Esse foi o foco do congresso “Imigração italiana na América do Sul: um balanço historiográfico e novas perspectivas de pesquisa”, encerrado nesta sexta-feira, 12, na Universidade Ca’ Foscari, em Veneza.
O evento reuniu pesquisadores de diversas instituições para discutir o fenômeno da imigração vêneta com base histórica e dados atuais.
Entre os participantes estavam os professores Luis Fernando Beneduzi e Alessandro Casellato, ambos da Universidade Ca’ Foscari. Beneduzi, ítalo-brasileiro e especialista em História e Instituições das Américas, foi um dos organizadores do encontro.
Em entrevista ao jornal Il Gazzettino, ele analisou as razões do crescente interesse pela dupla cidadania italiana entre descendentes de imigrantes sul-americanos.
Dois elementos de fundo
Segundo Beneduzi, o aumento nos pedidos de cidadania tem dois motivos principais: o sentimento de pertencimento e a busca por mobilidade.
“São dois os elementos de fundo: de um lado, o sentimento de ser italiano, tanto que decidem solicitar um reconhecimento nesse sentido; de outro, a questão de uma mobilidade mais facilitada (basta pensar que, com a cidadania italiana, é possível entrar nos Estados Unidos sem visto). É importante destacar que, assim como o sentimento de ser italiano muda do norte ao sul, pois as características são diferentes, da mesma forma os descendentes no exterior se imaginam italianos de maneiras distintas. E isso é simplesmente uma transformação”.
Sensação de pertencimento
Apesar das vantagens documentais, Beneduzi afirmou que, para muitos, a cidadania não representa benefícios concretos.
“Lembro do caso, que me foi contado, de uma jovem brasileira com antepassados italianos. O que ela expressava era uma sensação de pertencimento, de se sentir parte de uma coletividade que, na prática, não lhe trazia vantagens específicas. Afinal, não há benefícios em termos de saúde pública, nem em relação à previdência.”
Reconhecimento de um estado vivido
Para o professor, a cidadania funciona como um reconhecimento simbólico.
“Podemos dizer que, para certo grupo de pessoas, a cidadania italiana é o reconhecimento de uma condição que elas vivem de fato, mas à qual não têm direito formal. Talvez nunca saiam do Brasil, ou talvez sim, mas essa escolha não está ligada à ideia de obter benefícios”.
Atração de migrantes para ocupar espaços vazios
A migração vêneta em massa teve início nos anos 1870, motivada por crises econômicas e falta de acesso à terra. Ao mesmo tempo, países como Brasil e Argentina promoviam a entrada de europeus para ocupar áreas desabitadas.
“A emigração em massa começou nos anos 1870, associada às crises do capitalismo e da produção de alimentos na região. Vale lembrar que a reforma agrária no Vêneto só aconteceu no século XX. Foi uma fase em que, ao mesmo tempo, Argentina e Brasil promoviam projetos para criar uma nação, um povo, atraindo migrantes europeus para ocupar os espaços vazios. De um lado havia o desejo de migrantes em ter acesso à terra e produzir de forma autônoma. Do outro, uma elite dirigente com interesse em atrair populações ‘brancas’”.
Vilarejos inteiros atravessaram o oceano
Segundo Beneduzi, frações inteiras e até vilarejos se transferiram para o outro lado do Atlântico.
“Os governos latino-americanos chegaram a enviar ao Vêneto pessoas encarregadas de fazer propaganda. Muitas vezes, frações e vilarejos inteiros se transferiram para o outro lado do oceano, inclusive o padre. O tema da emigração é sempre muito associado ao sul da Itália, mas o primeiro boom aconteceu no norte. Nem todo o Vêneto migrou de forma homogênea: em Belluno, por exemplo, o fenômeno foi mais intenso do que em Treviso ou na região continental de Veneza”.
Um projeto econômico e de ascensão social
“Não diria que foi uma necessidade. Antes, um projeto econômico e de ascensão social, envolvendo o acesso à terra e a melhoria da qualidade de vida”, disse Beneduzi.
Tradições adaptadas ao novo ambiente
“Na verdade, os imigrantes precisaram mais se adaptar, já que chegaram a terras distribuídas pelo governo com uma vegetação completamente diferente da que conheciam. É verdade que algumas tradições foram adaptadas ao novo ambiente: desde o surgimento de capitéis dedicados ao santo da paróquia de origem até o tradicional filò, caracterizado no Vêneto por encontros noturnos na estrebaria para contar histórias e realizar trabalhos manuais. Como o clima no Brasil é menos frio, o encontro saiu da estrebaria e foi para a cozinha ou a sala: um momento de socialização, para conversar sobre a semana e ler cartas vindas da Itália”, explicou o professor ao jornal Il Gazzettino.
A América do Sul não é mais tão desejada
Hoje, a emigração italiana se concentra na Europa e nos Estados Unidos. O Sul da América perdeu atratividade por razões econômicas, mas o vínculo com os descendentes permanece forte.
“A emigração vêneta ainda existe, mas os destinos mais escolhidos pelos italianos hoje são europeus: Alemanha, Inglaterra, Espanha… Aos quais se somam os Estados Unidos. A América do Sul, por razões econômicas, já não é um destino tão desejado como foi no passado”.
Sentimento de pertencimento nas festas de família
“Diria que, a partir dos anos 1990, surgiu nas comunidades migrantes uma forte sensação de pertencimento: sentir-se parte de uma realidade ‘outra’ em relação à nação onde se vive. Esse sentimento também se expressa nas festas de família, verdadeiras recriações da figura do ancestral migrante. Outro fenômeno que cresceu muito foi o ‘turismo das raízes’, ligado ao desejo de conhecer o país de origem dos antepassados”, explicou.
Fragmentos ainda presentes no cotidiano
“Em parte, o número de pessoas que fala o dialeto vem diminuindo por uma questão natural. Em parte, persiste a ideia (ou o mito) de que ele continua sendo falado por muitos. Fragmentos, no cotidiano, ainda existem”.





























































